segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Acontece


Sentia o cheiro de alho exalando de suas mãos. Também um pouco de cebola, sabão e gordura. Típico odor do fim do lavar das louças. As mãos ainda úmidas apanharam a velha mochila e a sacola plástica com as mangas que colhera no quintal vizinho. Já eram 19:25 e ainda estava longe de casa. Duas conduções e algumas quadras de caminhada a separavam de seu lar. Aproveitava o caminho, seu único tempo “livre”, para ler. Gostava de romance, embora nunca tenha vivido um, tinha no amor a imagem perfeita, a resolução de seus problemas. Sorrisos, suspiros e emoções no ônibus para Vila Adélia. Quem a via sorrindo, chorando, sentindo prazer, nada entendia.

- Que acontece com essa garota? – Perguntou uma senhora a seu filho.
- Não sei. Mas a deixe, ela parece feliz. – Disse o rapaz que se interessou mais pelas pernas do que pelo livro da moça.

Seus dezenove anos lhe davam além da força pro trabalho, os atributos que fariam qualquer homem desejá-la. Mas um, somente um, naquele ônibus se interessava mais pelo sorriso do que pelo decote. Jair era um rapaz calmo, até demais para sua idade, com seus 25 anos já tinha sua casa, seu próprio negócio, uma pequena livraria na rua mais morta do centro da cidade e um cachorro cego que vivia latindo para um limoeiro que só lhe sujava a calçada. Vivia aos 25 uma vida que a maioria vive aos 70. Não saía, não tinha amigos. Só tinha seus livros e suas folhas secas na calçada.
Depois de 6 meses tomando a mesma condução, Jair criou coragem e lançou-se ao lado da garota que há tempos lhe chamava a atenção. Segurou-lhe a mão na tentativa de um ato cavalheiresco, mas a garota logo se recolheu. Provavelmente envergonhada da mancha de tomate na blusa e o forte cheiro da marmita que não almoçara. Era um dia quente, ela usava uma saia curta e sandálias. Jair nervoso, suava feito um porco e não falava coisa com coisa. Na tentativa de agradar a moça elogiou até o cheiro da comida. Fato que gerou risos nos passageiros que ouviam a conversa já que a essa altura da viagem o ônibus todo fedia a abobrinha. A moça envergonhada pulou no mesmo instante, descendo cinco pontos antes de sua casa.

- Cassandra!!!! – gritou uma amiga que passava pela rua – alto o suficiente para que de dentro do ônibus Jair descobrisse o nome da amada.

Semanas se passaram sem que Jair aparecesse no ônibus, até que um dia, Cassandra, sentada empunhando seu livro – “O Coração não sabe amar” de JP de Alencar – avistou subindo os degraus aquele homem que a envergonhara tanto. Fingiu não ver. Jair se aproximou, desculpou-se e pediu pra se sentar. Diante da negativa, recuou, mas não desistiu. Aguardou semanas até tentar uma reaproximação. Criou coragem, subiu no ônibus, fez o percurso 6 vezes, Cassandra estava atrasada. O relógio marcava 21:00. Jair desistiu, e na sétima viagem desceu no mesmo ponto em que subiu. E assim fez no dia seguinte, esperou pacientemente até que Cassandra surgisse. Do fundo do ônibus Jair observava cada detalhe até que Cassandra desceu. A seguiu, e ela corria, acelerou o passo ao perceber que era seguida. Jair gritou.

- Cassandra!
- Cassandra, por favor!

Ela parou, assustada, mas parou. Ofegante Jair entrega-lhe um livro. Ainda manuscrito.

- Preciso que me ajude. Não consigo acabar minha história.

Ao segurar o livro, deparou-se com o título – Desejos de Cassandra – Ofendida distribuiu empurrões e tapas até que o motorista, pelo retrovisor, avistou a situação e parou o ônibus.Jair foi linchado pelos passageiros.
Enquanto recuperava-se da surra que o deixou três semanas de cama, pensou e pensou sobre sua vida enquanto Cassandra lia o manuscrito, que apesar de ofendida com o título, derreteu-se em lágrimas ao ler o último capítulo. Ali encontrou um pedido de casamento assinado por Jair Paulo de Alencar, o mesmo autor de seu livro favorito.
Com o coração num misto de euforia e culpa correu para a livraria de Jair, a mesma onde comprou o livro. Correu em vão, ao chegar logo viu as portas fechadas. Pela vitrine não avistou nenhum livro nas prateleiras, nenhum sinal de vida naquele prédio.


Cassandra passou o resto de sua vida lamentando o amor perdido, sonhando a vida perfeita que teria se não tivesse espantado o bom moço.


Jair, ao recuperar-se da surra, fechou a livraria e saiu da cidade. Não acredita mais no amor, não escreve e não se aproxima de uma mulher que não o cobre por isso. Ele hoje é dono de um açougue. Passa o dia cobrando a carne que os outros comem e as noites pagando as carnes que saciam suas vontades.



Leandro Faustino

2 comentários:

  1. É realmente você tem razão... mas um final feliz era bom. Sei que a vida não é perfeita como agente quer, mas temos que tentar muda-lá ou fazer uma história, onde nossa imaginação tenta criar um final ou uma vida feliz! ^^ abç!

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  2. nossa, gostei pra caramba!

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